Quinta-feira Santa - 2011
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Bose, 21 Abril 2011
Homilia de ENZO BIANCHI
Jesús deve responder às expectativas de Deus e às acções do homem: e o que é extraordinário e, por isso, será o centro da nossa fé e da nossa vida cristã, é que Jesús responde com a Eucaristia.
in Coena Domini
escuta: a homilia de ENZO BIANCHI, Prior de Bose
Caríssimos,
Esta tarde somos comensais da mesa do Senhor: a nossa comunidade, as nossas irmãs de Cumiana, as irmãs da Igreja Etiópica Copta que estão connosco e vós, amigos e hóspedes. Somos todos convidados pelo Senhor a celebrar a Páscoa, a Páscoa em que o Senhor passou deste mundo para o Pai (cf. Jo 13,1), a Páscoa em que o Senhor quis resumir toda a sua vida, tanto quanto é humanamente possível, em dois gestos acompanhados de poucas palavras.
- O gesto do lava-pés, que nós recordaremos depois desta homília, como gesto que narra a acção de Jesús, não a acção de quem preside, mas a acção, o comportamento de Jesús na relação com os seus discípulos, logo na relação connosco. Um gesto que é um convite a que lavemos os pés uns aos outros e que encontra o seu cânone, a sua forma, no próprio gesto de Jesús, que procuramos narrar em toda a sua amplitude através de um sinal.
- O gesto eucarístico, agradecimento de Jesús ao Pai, benção de Jesús para com toda a criação e toda a história, mas também resposta aos acontecimentos da sua vida e que o levaram até ao fim, até à Paixão e à Morte.
Este ano a nossa meditação será sobre este segundo gesto de Jesús: a Eucarístia, cuja narração ouvimos nas palavras de Paulo, relatando à comunidade de Corinto a memória viva, vivida pela Igreja de Antioquia (cf. 1Cor 11,23-32), uma memória que já era celebrada em todas as comunidades cristãs como memória do gesto feito por Jesús na vigília da sua Paixão e também como revelação da sua Páscoa. Procuramos simplesmente escutar as Escrituras e compreender a Eucaristia através dele.
Jesus subiu a Jerusalém com a sua comunidade, com os doze e o evangelista Lucas acrescenta, consciente da Páscoa que Lhe estava para acontecer; Jesús assumiu um rosto pesado, duro mas resoluto (cf. Lc 9,51), dando a entender que não era necessário dizer mais nada, que tudo se resumia a simplicidade, gestos elementares e poucas palavras. Jesús sabe - certo, com a sua consciência humana, humana mas vigilante, uma consciência não adormecida, antes exercitada para compreender a necessitas humana e as exigências da vontade de Deus – que se aproxima a hora da sua morte. A hostilidade nos seus encontros cresceu, a autoridade religiosa, legítima e institucional, quer calá-lo e eliminá-lo e os seus discípulos mostram-se, cada vez mais, incapazes de compreender e de aguentar estar envolvidos na sua vida.
Jesús sabe que os outros dormiam, sabe que aquele a que tinha dado o nome de Pedro - a rocha -, com medo, será mais fraco do que uma cana rachada e sabe que, de entre os seus, há quem o irá entregar para ajudar ao seu fim. Mas Jesús lê tudo isto com uma consciência humana e como uma necessidade humana: Jesús sabe que não lhe pesa nenhum destino, não existe um destino, sabe que existe uma necessidade humana na história, porque as coisas neste mundo são assim, seguem uma lógica férrea pela qual o inocente, o justo podem apenas ser rejeitados, perseguidos e abandonados aos seus inimigos (cf. Sb 1,16-2,20). A banalidade do mal deste mundo – que não é humildade do mal, palavra demasiado nobre para ser aplicada ao mal -, a banalidade do mal está no acontecer quotidiano das coisas.
Contudo, Jesus não conhece apenas a necessidade humana, conhece também a expectativa de Deus; poderíamos também falar de uma necessitas divina, mas para compreender bem e não deixar lugar a equívocos prefiro dizer que Jesús conhece a expectativa de Deus. Jesús é assíduo com Deus: reza intensamente, em particular de noite, lê as Escrituras para descobrir como fazer a Sua vontade e, sobretudo, tem a Palavra de Deus no seu íntimo, como tantas vezes repetiu rezando o Salmo 40: «a tua lei está dentro do meu coração» (Sal 40,9). Está pois, diante de Jesús, naqueles dias da Páscoa, a expectativa de Deus, seu Pai e estão também acções precisas, responsavelmente feitas pelos homens. Jesús deve responder à expectativa de Deus e às acções dos homens: e o que é extraordinário, e por isso será o coração/ o núcleo da nossa fé e da nossa vida cristã, é que Jesus responde com a Eucaristia. A Eucaristia é, de facto, a melhor palavra para identificar os gestos de Jesús, porque é a Palavra que agradece: «eukaristésas» (Mc 14,23; Mt 26,27; Lc 22,17.19; 1Cor 11,24), ou seja «tendo agradecido, elevando a Deus uma prece, dizendo a Deus um “ámen” convicto e um obrigado», um obrigado que emana da sua fé inquebrável e do seu amor fiel ao Pai.
Mas este agradecimento era também uma resposta para os seus adversários, para Judas e para os seus discípulos, resposta que foi dada por Jesús com o gesto do pão e do vinho, acompanhado de pouquíssimas palavras. É significativo que Jesús não faça grandes discursos naquela tarde: sabemos que no quarto Evangelho os discursos de Adeus (cf. Gv 14,1-16,33) são a memória das suas palavras, mas palavras reveladas por um Kýrios glorioso e ressuscitado à sua Igreja, não palavras ditas por Jesús antes da sua Paixão. Jesús faz simplesmente um gesto, diz apenas que aquele gesto, aquela Páscoa tão desejada (cf. Lc 22,15), seria a última passada com os seus e diz que aquele cálice do fruto da videira, aquele vinho da convivialidade, aquele vinho que representava todo o amor possível, vivido por um homem na terra, seria o último da sua vida. Prestados os esclarecimentos, torna conscientes da sua hora, os discípulos - ouvimo-Lo e ouvimos sempre no centro da nossa Eucaristia, do nosso agradecimento feito com Ele - «Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: "Isto é o meu corpo que vai ser entregue por vós"» (Lc 22,19; 1Cor 11,24). Depois, do mesmo modo, disse: «Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós.» (Lc 22,20; 1Cor 11,25), ou: «Isto é o meu sangue da Aliança, que vai ser derramado por todos.» (Mc 14,24; Mt 26,28). O gesto é muito claro, quer ser uma prefiguração do que Jesús está prestes a viver, a sua Paixão, a sua Morte; mas quer também ser uma síntese de tudo quanto viveu até ali. Eis a resposta ao Pai, à expectativa de Deus, que pode ser expressa, de facto, com as palavras do Salmo: «Aqui estou! No livro da Lei está escrito aquilo que devo fazer.» (cf. Sal 40,8-9), o corpo que tu me preparaste, aceito que seja partido, que seja dado, é um corpo para os discípulos, é um corpo para a comunidade, é um corpo para a Igreja; e o sangue derramado da minha morte, é derramado por todos os homens, de todas as épocas e de toda a terra».
Porquê corpo partido e sangue derramado? O que esperava o Pai, de Jesús? O Pai esperava de Jesús o que tinha esperado todos os dias da sua vida terrena. Esperava que Jesús, qual filho, não assumisse nenhum comportamento contrário à justiça, contraditório com o amor, em desacordo com a sua infinita misericórdia. Jesús responde ao Pai agradecendo-Lhe, um agradecimento pela vida que o Pai lhe tinha dado, porque Jesús sabia e sabia-o melhor do que nós, que a sua vida, como a vida de cada um de nós, tinha sido criada/ desejada por Deus com um desenho e amor precisos. Jesús agradece ao Pai o dom de ser um Homem, a graça de ter vindo à terra, mortal como nós; agradece ao Pai ter podido amar esta terra; agradece ao Pai porque lhe permitiu ter pão e vinho, mover-se na lógica da necessidade e da gratuidade, na qual cada homem procura todos os dias viver e fazer viver os outros a seu lado; agradece bendizendo o Pai, mas, a verdadeira benção ao Pai, o verdadeiro agradecimento está no oferecer a própria vida, oferecer-se a si próprio. Eis a resposta de Jesús a Deus. Deus esperava apenas isto; não esperava nem a morte de Jesús, nem a violência que Ele sofreu, mas esperava que Jesús permanecesse, até ao fim, fiel aos seus sentimentos, que Jesús soubesse narrar até ao fim, o amor de Deus para com os homens. Se Jesús morria, era por uma necessidade humana, não porque Deus o quisesse.
Mas através da Eucaristia Jesús dá também uma resposta aos sacerdotes e aos escribas que o acusavam de blasfemar contra Deus. Deixando que os sacerdortes e os escribas, que a autoridade legítima do seu povo disponha d'Ele, o prenda, o declare maldito, o entregue a uma morte infame; fazendo e permitindo isso, Ele mostra poder, de facto, agradecer a Deus, porque Deus permitiu narrá-Lo/ mostrá-Lo neste mundo e... sem falhas. Eis porque Jesús não faz nada para contrariar o plano dos adversários, eis porque não responde com as armas que Eles usaram. A um certo momento cala-se mesmo (cf. Mc 14,61; Mt 26,63): falou, atacou os sacerdotes e os escribas, fez-lhes advertências (cf. Mt 23,1-36), mas, quando chegou o momento, é um cordeiro sem voz, não responde (cf. Is 53,7). Aquele pão partido e distribuído: eis aquilo que Jesús quer ser; aquele sangue derramado: eis o que confirma quem era Jesus, o que queria verdadeiramente e como não importava a sua vida, mas tão só que Deus pudesse ser narrado aos homens e os homens pudessem conhecer o que é o Amor.
Mas Jesus dá também uma resposta a Judas. Judas está terrivelmente presente nos textos que relatam estes acontecimentos: sentimo-lo no quarto Evangelho, mas também nos sinópticos e sabemos do anúncio que Jesús fez, falando de Judas, em conexão com a Eucaristia (cf. Mc 14,17-21 e par.). Judas é um dos doze, que O entrega e O trai e Jesús dá, também a ele, um pedaço de pão eucarístico; dá o seu corpo e o seu sangue também a Judas. O escândalo é assumido na comunidade cristã: os evangelhos não estão a analisar as causas psicológicas porque Judas traíu, não o desculpam abafando o escândalo; é escândalo, é obstáculo para todos. Se existem razões para Judas estar com os outros até entregar Jesús, só Deus é que sabe, não devemos ser nós a investigá-las, porque quando o fazemos, procuramos apenas atenuantes para nós mesmos. O que deve, de facto, ser tido em consideração é o escândalo da traição, e também a resposta de Jesús com a Eucaristia: "Judas - disse Jesús - eis o meu corpo, que te dou". E, significativamente, no momento da denúncia, no Getsemani, a saudação que Jesús lhe dirige é: "amigo - porque era esta a relação que Jesús tinha estabelecido com ele - a que vieste?" (Mt 26,50). Não só Jesús aceitou o beijo de Judas (cf. Mt 26,49), aceitou-o sem o recusar, sem se vingar, sem se defender e sem o condenar (todos nós sabemos que o beijo é o acto essencial do amor e, talvez, só aqueles que o dão, unicamente, ao Evangelho e ao altar sabem o que significa beijar a carne de um homem…).
Enfim, Jesus, com a Eucaristia responde aos seus discípulos, a Pedro, aos outros, a quem está cheio de medo e se mostra uma cana rachada, aos que dormem e não sabem vigiar. Também aqui, Jesús "não quebra a cana rachada, não apaga a mecha que ainda fumega" como anunciava o primeiro canto do servo de Isaías (cf. Is 42,3; Mt 12,20); diz até, aos discípulos: «Dormi agora e descansai!» (cf. Mc 14,41 e par.). Mas a todos estes seus discípulos – que somos nós, porque os discípulos de Jesús não eram diferentes da comunidade cristã de hoje e de cada um de nós, medrosos como a "rocha" ou sonolentos como os outros dez –, Jesús deu o seu corpo e o seu sangue, assim como o dá a nós.
A Eucaristia é a única e definitiva resposta de Jesús a Deus e à humanidade inteira e cada vez que a celebramos devemos, de facto, ter temor - o verdadeiro timor Domini, o único princípio de sabedoria humana (cf. Sal 111,10; Pr 1,7) –, no acolher nas nossas mãos e no acolher em nós a vida de Jesús concentrada num gesto, o corpo do Senhor para nós, o sangue para todos os homens. O que celebramos com o gesto do pão e do vinho, celebra-mo-lo em memória de Jesús também com o gesto do lava-pés. São duas memórias de Jesús em que não é possível nenhum protagonismo, nem de quem preside, nem do presbítero que preside à acção eucarística: é o Senhor que nos lava os pés, é o Senhor que nos dá o seu corpo e o seu sangue.
ENZO BIANCHI, Prior de Bose